domingo, 18 de janeiro de 2009

Preconceito. Mas... até quando?

Descarado, às claras, ou sorrateiro, escondido atrás de eufemismos cínicos ou pela afirmação de que tudo não passa de... "bricadeirinha boba", o preconceito -- racial, social, religioso ou de orientação sexual, pouco importa -- parece não ter fim. E dói mais quando a identificamos nos nossos próprios amigos...


Mulher, negra e pobre, num país machista, racista e metido a besta, desde sempre exprimentei o sabor amargo do preconceito. Mas sempre cuspi o conteúdo desse cálice. Certa vez, editora de um importante jornal do Rio de Janeiro -- primeira mulher na imprensa brasileira a assumir o cargo de editora de economia, antes reservados a machos -- eu o perdi quando assumiu um diretor de redação que achava "essa mulata" mais adequada para a editoria Geral, escrevendo sobre buracos de rua. Na época, botei a boca no mundo. E acabei reavendo meu posto. Bem verdade, tive de travar uma longa e cansativa batalha contra o desafeto. E precisei redobrar o cuidado para não errar e dar a ele o pretexto que buscava para me demitir. Mas valeu a pena. No final de três anos, ele caiu fora do jornal. E eu continuei...

Eu sei bem o que é preconceito. Dói. E dói muito mais quando vem de amigos. Pois bem. Ele, o preconceito, está mais vivo do que nunca. Ainda às claras, agressivo ou envergonhado (a exemplo dos eleitores do Maluf ou torcedores de times que descem para a segunda divisão...), escondido atrás da afirmação de que não passa de uma "bricadeirinha que estamos valorizando demais, por conta da mania de perseguição", o preconceito está mais vivo do que nunca. Repugnante como sempre.

O preconceito acaba de pôr a cabeça. No texto em que protesta contra o que ele e outros mais consideram invasão das praias do litoral paulistano por "pessoas feias, pobres e sem educação, que tudo sujam", um grande amigo meu aponta a feiura dos caiçaras, "mestiços, filhos de português com índios".

Preconceito! Inadmissível! Inaceitável!

A brutalidade do texto não diminui o meu carinho pelo amigo. Mas me inspira a escrever a carta que aqui publico.

Meu caro amigo,

a pobreza é mesmo uma coisa muito feia... Joãozinho Trinta tinha razão: pobreza só agrada a intelectuais de esquerda. Eu, que nasci no pé da Serrinha, no Rio de Janeiro, amiga de infância do Escadinha, sei muito bem disso. Aliás, meus amigos de infância ou estão presos ou estão na cadeia...

Eu escapei... Pulei o muro e invadi a praia de alguém...

No Rio de Janeiro, mocinha ainda, quando eu ia à bela Copacabana, Leblon, imagino que os burgueses de lá diziam o mesmo de mim -- que eu era feia... Meu maiô, quando já se usava lycra, feito em casa, ainda era de tecido, ou de crochê, delicadeza da minha bisa. Flácido, sempre largo demais... Uma coisa...

Nós, minha família e eu, éramos muito feios... Conforme você e outros dizem. Conforme ainda devem dizer os cariocas do Leblon a respeito dos cariocas do além-Rebouças...

A pobreza é tão feia que a deputada Sandra Cavalcanti, da extinta UDN (União Democrática Nacional) de Carlos Lacerda, nos anos 70, dizem, mandou matar mendigos e atirá-los no Rio Guandu... Quando ela prometeu obra de saneamento, era disso que ela falava... Antes, deve tê-los mirado, os mendigos, horrorizada, numa praia da Zona Sul. Numa praia que ela julgou pertencer a ela e somente a ela...

Eu escapei, pra hoje lhe escrever estas palavras, a você e a todos quantos pensam como você.

A pobreza, que gera magreza, pele esquálida e macilenta, roupas mal cortadas e a falta de educação que suja as vossas praias, senhoras e senhores, é mesmo coisa muito feia... Me desculpem... Mas o nojo que ela inspira nas pessoas -- inclusive aquelas que poderiam fazer alguma coisa para mudar a situação de miséria, mas não o fazem e preferem cuspir -- essa, sim, é uma coisa horrorosa...

Se o pobre comer e tomar um banho de loja, se estudar, pronto... fica... bonitinho, sociável. Mas preconceito, senhoras e senhores, não há personal style que dê jeito...

Uma pena que eu não se possa fotografar esse tipo de feiura (agora menos acentuada, depois da Reforma Ortográfica)... Muito me agradaria clicar o fantasma -- o fantasma do desdém, do desprezo, do esnobismo... e, depois, tendo-o preso na matéria papel, afogá-lo nas águas sujas do Guandu.

Um comentário:

Selma.Emeth disse...

Sei bem também o que é ver um amigo agindo com tal preconceito... realmente dói.

Mas é muito bom tê-la de volta, querida LHC!

Grande beijo!