sábado, 27 de março de 2010

Mãe-silêncio...




Onde é que você dorme agora?
Já não me bastava a morte de nascer?
Desde então, nunca mais, nos meus ouvidos,
o surdo que batia no seu peito...
Mãe, cadê você?
Mãe-silêncio...
Onde é que você está agora,
assim... tão quieta...
e tão definitivamente jovem e bela?
Por que será que foi embora?
Será que foi encontrar alguém,
no jardim da memória?
Será que viajou na estrela?
Mãe-silêncio...
Tantas são as coisas que ficaram por dizer...
e tantas outras por calar...
Onde é que você está agora?
Será que entrou no retrato?
ou na paisagem que você mesma pintou... aquela?
Mãe-silêncio...
Se você despertar, serei uma boa menina...
Se você acordar, eu prometo:
não digo mais palavrão,
paro de beber, chego cedo em casa,
passo, lavo, cozinho...
Mãe, a velhice vem vindo logo ali, na esquina...
e ainda nem aprendi a arte do seu crochê...
Mãe, volte aqui!
Acorde, mãe! Diga alguma coisa!
Mãeeeeeeeeeeeeeeeeeê!

Memória da chuva*

Não sei de onde vem esta coisa que balança entre a inquietação e a alegria sem rótulo toda vez que chove... Uma coisa que se derrama aqui dentro. Que refresca e aquece... No peito e entre as pernas. Talvez brote da Oxum que dorme em mim... quem sabe? Talvez... Talvez a raiz esteja lá, plantada na lembrança cristalizada da menina que saltava as poças d’água, bolsos cheios de bolas de gude que cantavam a mais estranha canção, roçando-se umas nas outras. A água tépida da chuva sempre foi a coisa mais carinhosa que tocou minha pele, escorrendo em meus cabelos, emaranhados. Menina-novelo. Menina-meio-menino, mesmo sem cruzar, o arco-íris, o canhão de luz colorida que pintava as tardes lavadas pela tempestade no quintal da favela... e alimentava minha esperança de dias ainda mais luminosos. A chuva enxurrava humilhações e misérias... Que brilho tinha para mim a chuva, desenhando perfis medonhos na janela! Que fantásticos os diamantes que gotejavam... Antes, o aceno...
Não sei, não, meu amor, de onde vem, quando chove, esta vontade de me aninhar, de trepar até arder inteira e depois voar o vôo das amantes saciadas... Não sei... Não sei, meu amor, de onde vem, quando chove, a visão da vida e da morte, subitamente, fundidas no mesmo pedestal... Talvez me venha desta Oxum que dorme, desperta, ama, sorri e chora no lugar mais fundo de mim...
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* texto publicado na 39ª edição das Escritoras Suicidas (www.escritorassuicidas.com.br)