A casa
das moças...*
de Lucia Helena Corrêa
Em algumas coisas, moleque de saias que sempre fui e ainda sou,
desde sempre, me pareci com todas as outras meninas. Por exemplo? Na
curiosidade que quase chegava a doer, de visitar a casa da esquina. A casa de
fachada e luzes vermelhas. A casa que as senhoras do bairro, com ar de desdém,
chamavam de “casa de tolerância”. O puteiro!, no palavreado destampado dos
rapazes do bairro. Na maioria dos casos, era lá que eles se iniciavam nas
descobertas do sexo, levados pelos pais ou irmãos mais velhos.
Minha curiosidade alimentava-se, grande parte, da proibição.
“Moça de família, feita pra se casar direitinho, na igreja, de véu e grinalda,
não deve passar nem na calçada daquele antro”, destilava Dona Rita, a chefe do verdadeiro
exército de defesa da moral e dos bons costumes. Cruz credo!
Mas... por quê? O que de tão ruim poderiam fazer, a nós, “moçoilas”
de família, aquelas misteriosas senhoritas. Para não correrem o risco de cruzar
com uma “senhora de respeito”, revezando-se iam à padaria todo santíssimo dia,
no primeiro horário – às cinco da manhã – para comprar leite e pão... Eu, tendo
de estar às sete na escola, era espectadora assídua e encantada daquele verdadeiro
desfile privé... Um dia, lembro-me bem, faltaram uns poucos centavos para pagar
a conta e uma delas, sem dizer palavra, sorriso no canto da boca, completou...
Mas as moças da casa de fachada e luzes vermelhas não eram
apenas silenciosamente gentis. No mínimo, poderiam nos ensinar, a nós,
meninas-moleque, a arte da elegância. Na breve escapada, como que saídas dos
porta-retratos antigos, elas deixavam um rastro de fidalguia, portando
espartilhos, saias rendadas e até chapéus! Mas, principalmente, um perfume de
jasmim, que até hoje incensa a minha lembrança mais fantástica.
“Fique longe dessas moças”, rosnavam as patrulheiras da
virgindade. E eu, que gostaria de copiar a altivez daquelas raparigas, só muito
mais tarde pude entender o porquê de todas aquelas mulheres sem orgasmo, de
buço, pernas e axilas peludas detestarem tanto as moças da casa vermelha... Com
toda certeza, o rancor, invejoso, vinha de saber que lá, nos braços lisinhos e
perfumosos daquelas deusas trancafiadas, os maridos, noivos, namorados e filhos
iam colher o fruto que a horta de casa, guardada a sete chaves pelo moralismo,
jamais lhe concedeu...
Talvez a expressão “casa de tolerância” tivesse outra raiz...
Quem sabe? Havia que ter muita, muita tolerância, para suportar a vida de
aceitação de homens deformados pelo estilo de vida, barrigudos, bêbados...
Homens que exalavam cheiro ardido, violentos, de olhos apagados e, muitas
vezes, sexo murcho...
Casa de tolerância? Havia que ter, sim, muita, mas muita
tolerância, para esperar o dia em que fregueses bonitos, cheirosos e gentis as
levariam, uma a uma, embora dali...
Isso ninguém me disse. Eu mesma ouvi, enquanto aguardava, na
varanda da casa vermelha, que alguém me viesse atender: uma das moças se
esqueceu de levar a broa de milho pela qual pagara. Era a chance que eu queria
para chegar, ao menos, até a porta da casa dos mistérios e arriscar uma
bisbilhotice... Enquanto esperava, com o pequeno embrulho de papel pardo na
mão, ouvi e vi pela fresta da porta uma das meninas, ajeitando a cinta-liga preta,
confidenciar à amiga que a noite tinha sido simplesmente terrível. “Não vejo a
hora de sair daqui, me casar, ter filhos, netos”...
Anos mais tarde, jornalista da Última Hora, ouvi o mesmo
mantra, recitado pelas moças da casa de tolerância da rua onde nasci, e que,
finalmente, pude desvendar, numa entrevista comovente e inesquecível.
Mas foram as mulheres do Mangue, que, sem a mesma elegância
anacrônica das moças do meu bairro, sem dentes, peitos caídos e esperança
calcinada, me brindaram com a frase de abertura, o lead da reportagem.
“Mulheres de vida fácil? O cara que inventou essa expressão para nos definir só
pode ser um grandessíssimo filho da puta”...
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