Conversa com a Velha Senhora...
Há quem se orgulhe de ser vegetariano e até de não conseguir dormir à noite, acredita? Em pleno churrasco de domingo, ou de manhã, à mesa do café, lá está a criatura insone, esfregando os olhos e a abstinência na cara da gente. Olheiras e discurso esverdeado, vazio. Com sorte, um dia ela vira um pé de alface! E eu ali, atracada com a picanha, a chuleta e o cupim... Hum...
Há, mesmo, quem, estranhamente, se orgulhe de ser vegetariano e de nunca dormir. Pior, há quem se envaideça de jamais ter amado a ninguém, de ter escapado ileso das armadilhas da paixão, de jamais dividir o espaço e de ter aquele tipo de casa em que os tapetes estão sempre insuportavelmente limpinhos e esticados. Tudo rigorosamente no lugar, por absoluta falta de quem mexa no que quer que seja. No máximo, a cadelinha que vai ao cabeleireiro no sábado e à manicure na sexta. Uma cadelinha que, naturalmente, não late.
Tem gente que detesta crianças! Não sabe que crianças são e sempre serão melhores do que cães: não mordem, não soltam pelo, não têm pulga ou carrapato (no máximo, um piolhinho, na pré-escola...). Melhor, quando crescem, vão ao banheiro sozinhas! Crianças são a presença mais plena de Olorum na Terra...
O poeta Antônio Maria estava certo: a única vantagem de ser só é que você pode ir ao banheiro e deixar a porta aberta. Não vejo qualquer vantagem em ser só... Não me orgulho nem um pouco de ser só. Mesmo quando estou sozinha (ou acompanhada de mim mesma), não estou só. E não falo apenas das bactérias, que estão por toda a parte. Falo do amor que me move, desta imensa vontade de viver e de voar, mesmo agora, quando já me faltam as forças... A alma já foi aonde meus pés jamais me poderiam levar... Eis-me aqui – eu, feixe de ossos e nervos, rio de sangue e lembranças –, assistindo à minha própria alma ali, no horizonte, dançar um estranho balé...
Tem gente que se orgulha de não comer carne, de não dormir à noite, de não amar, de viver só, de não ter filhos e de manter a casa limpa e arrumadinha... Eu me orgulho de ainda estar viva! É isso, aí, Velha Senhora: toda vez que você vier me buscar, estarei ocupada, dormindo, comendo picanha, amando no limite do sangramento ou cometendo poesias... O corpo está de cama. Mas a alma anda por aí, livre, fora do seu alcance, das suas garras! Um aviso: eu posso até morrer, mas se morrer, saiba que vou morrer atirando! Afinal, já sei pra que me serviu aquele curso de guerrilha... LHC, SamPa, domingo de calor africano...